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“Como assim…?” – O Conflito de Valores na Prática Clínica

“É uma lotaria”, digo muitas vezes. Não resisto à tentação de comparar o encontro entre Psicólogo/a e cliente a um match numa dating app. Faço-o no reconhecimento daquele factor x que viabiliza a relação terapêutica (e, ao longo do tempo, a reforça), mas sobretudo para normalizar a ideia de que a pessoa pode e deve procurar outro/a Psicólogo/a caso sinta que a relação não funciona. Mas, e quando é o/a profissional que sente desconforto perante a pessoa?

Enquanto disciplina e profissão, a Psicologia exige o respeito absoluto pela singularidade de cada pessoa. Nos códigos deontológicos dos diferentes países, são várias as directrizes que postulam o direito/a do/a cliente a uma intervenção isenta (sem julgamento, crítica ou discriminação por nenhum motivo), bem como o dever do/a Psicólogo de adquirir e desenvolver as competências, pessoais e profissionais (sensibilidade, empatia, competência cultural, entre muitas outras), necessárias aos objectivos do processo terapêutico: promover a saúde e o bem-estar do/a cliente, independentemente das suas características. Mas o dever de objectividade e neutralidade não despe o/a Psicólogo/a das suas próprias características – aliás, as nossas crenças, valores e preferências são, também, ferramentas de trabalho – nem previnem potenciais vieses que delas podem decorrer. No jogo de equilíbrio entre a pessoa que somos e o/a profissional que devemos ser, existem situações em que diferenças conflituantes podem redundar em desentendimentos ou mesmo no compromisso do processo terapêutico.

A maioria está ciente destes aspectos e acredita poder contorná-los, mantendo uma atitude de aceitação e curiosidade genuína, mesmo perante valores e convicções diferentes. Porém, em situações pontuais, somos invadidos/as pelo espanto ou até pela indignação. Admitamos ainda que, em tempos de opiniões inflamadas, também os/as Psicólogos/as são mais vulneráveis aos efeitos da polarização. Questões antes neutras ou laterais podem adquirir uma carga emocional elevada e/ou tornar-se algo identitárias. Diálogos polarizados podem intensificar reacções emocionais e tornar-nos mais sensíveis a opiniões, comentários, gestos e atitudes.

Na garantia dos vários imperativos éticos perante um conflito de valores, é essencial trilhar um caminho consciente de gestão do desconforto. É uma situação delicada que obriga à acção imediata. A primeira linha de abordagem deve ser o enquadramento ético (ethical bracketing) – um processo que consiste na separação intencional dos nossos valores pessoais dos do/a cliente, ao longo do qual a nossa empatia, flexibilidade e capacidade de adaptação serão postas à prova.

Primeiro, há que reconhecer o sintoma – aquela verbalização que, além de estranheza, produz em nós uma reacção emocional intensa e imediata. Mas diante da ferroada psicológica, nem sempre é possível identificar imediatamente a raiz do desconforto. É baseada numa experiência pessoal, num preconceito, numa crença religiosa, moral, ideológica? Que barreiras internas estão em causa? A par deste exercício de auto-exploração, é útil aprofundar o conhecimento sobre o tema na base do conflito (exemplos concretos incluem questões de género, o aborto, a morte medicamente assistida ou a filiação política, entre muitos outros), procurando formação específica e consultando colegas em contexto de intervisão e supervisão. Algumas vezes, a linha que separa o que podemos aceitar daquilo que nos indigna é ténue. A supervisão, em particular, é um espaço vital para debater e identificar os nossos limites. Se estiverem irremediavelmente invadidos, é crucial assumi-lo. Pode ser necessário encaminhar a pessoa para um/a colega. Esta decisão não deve ser vista como um fracasso ou desistência: nunca tomada de ânimo leve, deve ser fundamentada na melhor análise das circunstâncias e no melhor interesse do/a cliente.

Lidar com conflitos de valores exige humildade, introspecção e compromisso com o desenvolvimento pessoal e profissional – um processo que nos permite robustecer competências e gerir vulnerabilidades, que nos transforma, em última instância, em melhores profissionais. É possível navegar estas águas agitadas de forma ética e profissional, tendo presente que as pessoas-Psicólogas (também elas frágeis, falíveis, vulneráveis à diferença), como noutras situações da vida, podem encontrar no conflito oportunidades inesperadas de crescimento.