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Sobre Trabalho e Justiça Social: O que há em comum entre a crença na Meritocracia e a crença no Pai Natal?  

O apelo da crença na meritocracia reside na ideia de que o nosso sucesso é feito por nós (…) temos sucesso ou fracassamos com base nos  nossos méritos. Recebemos o que merecemos.” (p. 148) 

 – Michael J. Sandel, in A Tirania do Mérito (2020)  

Uma criança pode acreditar que a decisão do Pai Natal em dar prendas às crianças que, durante o ano, se “portaram bem” é moralmente justa. É simples: aquelas que tiveram boas notas, comeram sempre a sopa e não andaram em brigas, merecem ter a árvore de Natal carregada com prendas; as outras, que se portaram mal, portem-se melhor no próximo ano.  

Um/a trabalhador/a bem-sucedido pode acreditar que o seu trabalho é socialmente valorizado e pago consoante os seus talentos, a sua dedicação e esforço individual. É simples: aqueles/as que nasceram com maior aptidão, estudaram mais e investiram na carreira, merecem uma vida mais digna; os/as outros/as, que ganham menos e não se sentem dignificados na profissão, tivessem estudado mais, feito outras escolhas ou, simplesmente, tivessem-se esforçado.  

Em ambos os casos, a métrica moral de “cada um/a recebe o que merece” é suficiente para justificar que poderá existir justiça nas desigualdades.  

É fácil acreditar que o João, do 1.º B, que adormece nas aulas de Estudo do Meio e demonstra pouco interesse merece um “não satisfaz”, enquanto a Maria que é mais participativa e se sai melhor nas avaliações, merece um “satisfaz bastante”. Tal como é fácil tomar por justa a desigualdade salarial e, sobretudo, de estima social entre, por exemplo, um/a qualquer profissional de saúde e um/a profissional de recolha de resíduos municipais.  

Mas, se estes/as profissionais fizessem greve por uma semana, não seria evidente o quanto a sua contribuição é essencial para o bem-comum, tal como a dos/as profissionais de saúde? 

Se, por um lado, é possível reconhecer que o mérito pode ser uma métrica útil na garantia de desempenho e qualidade (afinal, quem é que não quer o/a melhor dentista possível a tirar aquele maldito dente do siso?), não é possível negligenciar como as oportunidades de expressar o talento e de desenvolvimento académico e profissional são, em larga medida, socialmente herdadas. Explico: melhores condições de vida permitem tempo, recursos e disponibilidade psicológica para estudar, aprender e desenvolver competências, bem como redes de contactos pré-estabelecidas abrem mais portas no mercado de trabalho.  

Neste sentido, os sistemas baseados no mérito – tal como a decisão do Pai Natal – são falíveis na garantia de Justiça Social, uma vez que ignoram as condições desiguais de partida entre pessoas de diferentes classes sociais e desvalorizam as contingências da sorte (ninguém escolhe a classe social em que nasce, a predisposição para determinados interesses e talentos, a valorização desses talentos pela sociedade e pelo mercado, nem as oportunidades que surgem ao longo da vida). Além disso, apresentam uma solução de competição em prol da ascensão social, sem garantir respostas efectivas à herança socioeconómica e a outros factores estruturais que geram desigualdades em primeira instância.  

Atenção, não atiremos fora o bebé com a água do banho: nas organizações, os sistemas baseados no mérito podem ser úteis na promoção do desempenho e na valorização do desenvolvimento profissional, desde que não ignorem as desigualdades de partida, garantam compensações de base dignas e prevejam as contingências da sorte que podem prejudicar os/as trabalhadores/as.  

Tal como as crianças deixam de acreditar no Pai Natal pelo gradual desenvolvimento do pensamento lógico, é necessário desconstruir a lengalenga fantasiosa de “cada um/a tem o que merece”: nem todas as crianças têm sopa para comer, assim como nem sempre as profissões que contribuem para o bem-comum das comunidades são dignamente recompensadas. 

Soluções? O pensamento de Michael J. Sandel traduz-se na necessidade de novos modelos de justiça contributiva e de distribuição da riqueza, de novos sistemas de selecção parcialmente aleatórios no acesso à educação superior, bem como na urgência de espaços de participação cívica que nos permitam, enquanto cidadãos e cidadãs, redefinir os objectivos e propósitos da nossa comunidade, incluindo a valorização das diferentes profissões.  

O objectivo último é claro: promover a dignidade do trabalho e a maior igualdade de condições dignas de vida, restaurando a coesão social em prol do bem-comum.