A minissérie sueca Out of Touch (Handen på Hjärtat, 2022), recentemente disponibilizada na Filmin, tem os ingredientes certos para um domingo pachorrento: um drama romântico sobre uma jovem Psicóloga que possui o condão extraordinário de vislumbrar o percurso dos casais que acompanha em terapia, tocando-lhes, simplesmente, sobre o coração. Mas este dom compromete a sua própria disponibilidade para amar, implicando a premonição do fim dos seus romances, antes mesmo de terem começado. A trama complica-se quando os seus pressentimentos sobre um novo interesse amoroso se afiguram contraditórios.
Ora, à partida, esta sinopse é uma das muitas variações que populam a narrativa romântica, neste caso, um certo cinismo face às relações amorosas que acaba por sucumbir ao poder do amor verdadeiro – a bruma que, por magia, coloca a gata borralheira (sobrenatural, mas numa versão muito moderna e profissionalizada) nos braços de um príncipe determinado a vencer todas as barreiras para arrebatar a sua princesa-vidente. Nada contra, à excepção de alguns detalhes: a princesa é Psicóloga (o seu príncipe também), os desafios dos casais em terapia representam problemas reais e, em nenhum momento, nos é dado a perceber o que pode a Ciência Psicológica fazer em tais situações. Pior, coloca a Psicologia num lugar quimérico em que a profissional, com um toque de magia, se dá ao luxo de abdicar de todo o seu saber científico teórico e prático para, nos casos em que antecipa finais felizes, converter a vulgar abóbora relacional na carruagem conjugal para terra dos sonhos – como no conto de fadas, abracadabra. É, precisamente, o tipo de conteúdo que alimenta o “mito da bola de cristal” que assombra os/as Psicólogos/as deste o início dos tempos (quem nunca ouviu o célebre chavão: És Psicólogo/a? Então deves saber o que estou a pensar!).
Nada como uma boa dose de suspension of disbelief num produto de ficção (admita-se, Out of Touch é adorável). Note-se, porém, que a Psicologia é altamente vulnerável aos seus efeitos. A fantasia da compreensão mágica e/ou da telepatia infiltra-se em todas as representações dos profissionais de Saúde Mental na televisão ou no cinema, a par de uma tendência voyeurista sobre os seus meandros (justificada por desconhecimento), promovendo a confusão de identidades profissionais (Psicologia, Psiquiatria, Psicoterapia) e estereótipos e ideias irrealistas sobre para que servem, métodos que utilizam ou quem a elas deve recorrer. Abundam imprecisões sobre as muitas dimensões da intervenção psicológica, reduzindo-a quase exclusivamente ao contexto psicanalítico, onde a relação terapêutica é ainda retratada como passiva (o/a profissional toma notas enquanto a pessoa discorre sobre a sua vida) e/ou sexualizada – algo que, na vida real, representaria uma transgressão deontológica grave. São também frequentes ilustrações de situações pessoais obscuras que conduzem à transposição de limites e a retratos profissionais peculiares (sinistros, excêntricos, vilões).
É certo que o objectivo da ficção não é o de informar. Porém, a investigação mostra que as representações dos/as profissionais da Psicologia impactam as atitudes do público face à Saúde Mental, à profissão e à procura de ajuda. Retratos irrealistas ou distorcidos podem comprometer a compreensão dos objectivos e alcance da intervenção psicológica e gerar percepções equivocadas sobre os processos terapêuticos e natureza da relação terapêutica, reforçando até a ideia de que práticas antiéticas são aceitáveis. Pelo contrário, retratos positivos, realistas e precisos promovem a diminuição do estigma (face aos problemas de Saúde Mental e aos/às Psicólogos/as) e facilitam a procura de cuidados adequados – eficazes e cientificamente sustentados. Servem estas constatações para reforçar alguns dos aspectos com os quais os/as profissionais devem preocupar-se, ainda que excedam as fronteiras da prática estrita. Considerando a juventude da nossa ciência e o longo caminho a percorrer ainda no que à afirmação da Psicologia diz respeito, o compromisso de educar acerca da própria profissão é indissociável da nossa actuação. Ainda que a representação dos/as Psicólogos/as na ficção tenha vindo a melhorar nos últimos anos, vários autores advogam que os/as Psicólogos/as têm o dever de comentar e clarificar produtos de ficção onde sejam retratados, além de simplesmente os consumir, defendendo mesmo que o treino desta competência crítica deveria integrar a formação em Psicologia. Somos a imagem da nossa ciência, por isso, embaixadores da nossa prática. Ninguém melhor do que nós pode promover representações rigorosas e éticas da Psicologia, e mesmo expandir o valor da ficção e do entretenimento enquanto ferramentas de literacia.