
“Como sabe, estamos com muita falta de técnicos. Então gostávamos que, além das suas funções como psicólogo, também assumisse as funções X, Y e Z”; “Essa informação que tem do seu lado é muito importante para nós. Os dados A, B e C devem ser partilhados com toda a organização”; “Temos este problema em mãos, mas já decidimos o que fazer. Era bom que escrevesse um documento a explicar porque é que essa é a melhor solução”
O psicólogo não exerce no vácuo. Todos nós articulamos com outros interlocutores e todos nós, num ou noutro momento, recebemos pedidos por parte desses interlocutores. Podemos até olhar para estes pedidos de uma forma positiva, como sinal de que somos vistos como agentes capazes de contribuir a vários níveis para os contextos nos quais nos inserimos. O próprio Código Deontológico estabelece que “Os/as psicólogos/as contribuem para a realização das finalidades das organizações com as quais colaboram” (3. Relações Profissionais, 3.4 Cooperação Institucional). Mas… significa isto que o psicólogo deve estar disponível para fazer tudo o que lhe for pedido?
A resposta a esta pergunta também está no Código Deontológico: “… desde que não sejam contrárias aos princípios gerais e específicos deste Código” (3. Relações Profissionais, 3.4 Cooperação Institucional). E, sobretudo, “Os/as psicólogos/as exercem a sua actividade de acordo com o princípio da independência e autonomia profissional em relação a outros profissionais e autoridades superiores” (3. Relações Profissionais, 3.3 Autonomia Profissional). Por outras palavras, o psicólogo não funciona num registo “amestrado” de faz-esta-tarefa-e-toma-lá-um-amendoim. É um profissional, com a autonomia que advém do seu conhecimento dos pressupostos técnicos, científicos e éticos da profissão, e do conhecimento que tem sobre os alvos da sua intervenção, em virtude da relação que estabeleceu com estes. Cabe-lhe responder aos pedidos que recebe dentro do âmbito e dos limites desse papel.
Então e… os pedidos dos interlocutores estão sempre alinhados com o papel do psicólogo? Pois… nem sempre. Por vezes recebemos pedidos um pouco (ou muito) fora desse enquadramento. E, por vezes, esses pedidos podem até ser formulados de uma forma que nos coloca numa situação de conflito de interesses, deixando latente (ou patente) que podemos vir a ser “punidos” por fazer a coisa “certa”. O que fazer?
— Prevenir. Por vezes, o interlocutor não sabe (nem tem como saber) o que esperar de nós. Uma abordagem pedagógica pode ser muito útil para proporcionar esse enquadramento, prevenindo pedidos inadequados. Assim, quando começamos a exercer num novo contexto, podemos começar desde logo a enquadrar os nossos interlocutores sobre aquilo em que estamos (e não estamos) disponíveis para contribuir.
— Esclarecer. Face a um pedido inadequado, a abordagem mais simples (e mais diplomática) é, frequentemente, assumir boa-fé por parte do outro e manter a abordagem pedagógica. Podemos esclarecer o interlocutor sobre os potenciais riscos de corresponder àquele pedido. Por exemplo, explicando, se for esse o caso, que assumir aquelas funções, partilhar aquela informação ou redigir aquele documento, nos termos em que isso nos é solicitado, pode deteriorar a confiança que aqueles com quem trabalhamos têm em nós. E que, nesse caso, podemos deixar de ter as condições necessárias para trabalhar. O que não é do interesse de ninguém.
— Procurar soluções de compromisso. Vale a pena tentar perceber qual é realmente a razão por trás do pedido que nos é feito. De que é que aquela pessoa precisa realmente? Pode dar-se o caso de até ser possível dar resposta àquele pedido de uma forma que beneficie o outro, e até a nossa intervenção, e sem incorrer em riscos desnecessários. E, assim sendo, perfeito.
O cliente não tem sempre razão, mas, geralmente, tem as suas razões. Cabe-nos, no âmbito da nossa autonomia, ponderar os pedidos que nos são feitos, as razões por trás desses pedidos, e em que medida lhes conseguimos ou não dar resposta dentro do âmbito e dos limites do nosso papel. Avaliando se aquilo que, aparentemente, nos “protege” no imediato nos pode ou não fragilizar a longo prazo. E compreendendo que é na nossa autonomia que reside o valor dos nossos contributos para aqueles com quem articulamos.