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É possível falar de empregabilidade sem falar de habitação?

Fala-se muito de escolhas de carreira: muito pouco do que as permite. A ideia de empregabilidade tem sido construída em torno da iniciativa individual. Valoriza-se o esforço de saber procurar e saber agarrar oportunidades. Fala-se de mapas de carreira; mas, em Portugal, há mapas que vêm rasgados.

Nos últimos anos, o acesso à habitação tornou-se um dos principais factores de exclusão indirecta no mercado de trabalho. Os números são conhecidos, mas vale a pena repeti-los:

  • Entre 2015 e 2023, os preços das casas em Portugal aumentaram cerca de 105.8%. No mesmo período, a remuneração média cresceu apenas 33,7%.
  • Portugal tem hoje a pior relação entre os preços das casas e rendimentos de toda a OCDE (2024).
  • É também o 3.º país da União Europeia onde o preço das casas mais cresceram (2024).
  • 3 em 10 arrendatários gastam mais de 40% do seu rendimento só com a renda (2022).
  • Mais de metade dos jovens entre os 25 e os 34 anos ainda vivem com os pais (2021).
  • Portugal atingiu o valor mais alto de sempre no índice de acessibilidade habitacional.

A escassez da oferta e a financeirização do imobiliário criaram um novo dilema: a impossibilidade de viver perto das oportunidades. Por consequência, muitos jovens adiam a saída de casa. Outros aceitam empregos que não correspondem às suas escolhas de carreira. Alguns tentam viver em zonas periféricas e enfrentar deslocações prolongadas. Entrar no mercado de trabalho implica cálculos que pouco têm a ver com competências. Quanto custa uma renda? Quantas horas de deslocações diárias? Quanto sobra no fim do mês, depois do essencial?

A literatura sobre transições para a vida adulta tem sublinhado, de forma consistente, que a estabilidade material é uma condição prévia para a autonomia. Sem ela, as decisões tornam-se provisórias. Anthony Giddens chamou-lhe “segurança ontológica”: a confiança mínima nas condições de vida que permite pensar o futuro com algum sentido de continuidade. Quando a habitação é incerta — porque é cara, porque pode ser perdida a qualquer momento — torna-se difícil estruturar um projecto de vida.

Há também um preço psicológico. A psicologia tem documentado os efeitos da instabilidade habitacional na saúde mental. Estudos longitudinais demonstram que tanto a exposição prolongada como a intermitente a dificuldades de acesso à habitação estão associados a níveis mais baixos de saúde mental, mesmo após controlo por variáveis sociodemográficas. A literatura aponta para um efeito cumulativo: quanto mais tempo se vive em situação instável, maiores os riscos associados. E quando essa instabilidade se cruza com vínculos laborais frágeis, o impacto aprofunda-se.

Alguns autores chamam-lhe “dupla precariedade”. A conjugação entre habitação inacessível e emprego incerto afecta de forma mais intensa os jovens adultos, pessoas que vivem sozinhas e famílias monoparentais. Um estudo da Eurofound (2023) indica que jovens europeus, incluindo os portugueses, apontam o acesso à habitação como um dos principais obstáculos ao seu desenvolvimento profissional.

É neste contexto que se torna necessário revisitar a forma como se fala de empregabilidade. A insistência num discurso centrado exclusivamente em competências corre o risco de se tornar uma forma de ocultação. Substitui a análise das condições reais por uma retórica de auto-superação. Promove-se o esforço individual sem reconhecer os limites que o contexto impõe.

Atenção: É importante que se fale de empregabilidade. Que se promovam competências, que se incentive a formação, que se valorize o trabalho; mas a empregabilidade não se constrói apenas de mindset, soft skills e lifelong learning. Constrói-se com paredes, com metros quadrados. Constrói-se com um mínimo de chão. Com um lugar onde se possa começar. E onde seja possível ficar.

Continuar a falar de empregabilidade sem falar de habitação é insistir numa ficção. Numa altura em que se multiplicam discursos sobre futuro e talento, é preciso dizer o óbvio: não se pode trabalhar onde não se pode viver. Para os mais jovens, a pergunta não é apenas “em que área queres trabalhar?”. É, cada vez mais, “onde podes viver para o fazer?”.