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O mundo como sala de aula: do passaporte às competências-chave

Não é apenas entre aulas, livros, estágios e formações que se constrói uma carreira em Psicologia. A identidade profissional também se molda à medida que vivemos experiências, refletimos sobre elas e, sobretudo, nos deparamos com realidades que desafiam aquilo que tomávamos por garantido. E poucas experiências são tão enriquecedoras nesse sentido como viajar. Não no sentido turístico e superficial (nada contra selfies com monumentos), mas enquanto saída da nossa zona de conforto, com tudo o que isso implica.

Estar noutra cultura obriga-nos a fazer reajustes constantes. Os códigos mudam, os horários não batem certo, as expressões emocionais soam diferentes, e até pedir um café pode ser uma experiência transcendental. Nestes momentos, não dá para viver em piloto automático. Ouvir torna-se mais importante do que falar, o julgamento rápido dá lugar à observação curiosa, e a ambiguidade passa a ser a nossa companheira de viagem. É aí que começamos a treinar competências essenciais para quem trabalha em Psicologia: flexibilidade cognitiva, empatia intercultural e uma saudável dose de autorregulação emocional.

Curiosamente, estudos na área da Psicologia Social e Cultural têm demonstrado que pessoas que viveram em mais do que uma cultura, tendem a apresentar maior criatividade e capacidade de resolução de problemas complexos (Leung et al., 2008). Isto acontece porque a exposição a múltiplas perspetivas estimula o pensamento e desafia os nossos automatismos cognitivos, algo essencial para a prática psicológica, que vive da adaptação ao inesperado. Ou seja, não é só o Instagram que ganha com estas experiências, o cérebro também agradece.

Segundo Kolb (1984), é quando aquilo que vivemos entra em dissonância com o que tomávamos como adquirido que ocorre a verdadeira aprendizagem. Este desalinho entre o que nos é familiar e a novidade força-nos a reinterpretar, reconstruir e atribuir novos significados. Às vezes, basta tentar explicar o conceito de saudade ou o entusiasmo nacional por pastéis de nata a alguém que nunca pisou Lisboa para percebermos o quão profundamente carregamos códigos culturais que nunca tínhamos questionado.

E essa consciência importa, porque na prática psicológica, não chega conhecer teorias ou dominar técnicas. É preciso saber estar com o outro, sobretudo quando esse outro nos confronta com formas de viver, pensar e sentir muito diferentes das nossas. A competência intercultural, a sensibilidade ética e a capacidade de adaptação são, cada vez mais, marcas de um exercício profissional consciente e humanizado.

Contactar com outras realidades profissionais pode ainda expandir as nossas possibilidades de ação. Ver de perto o que se faz noutros países, desde políticas públicas inovadoras a modelos de intervenção comunitária alternativos ou práticas clínicas pouco exploradas em Portugal, permite-nos pensar criticamente sobre o nosso próprio contexto. Congressos, estágios internacionais, colaborações informais ou até uma simples conversa entre colegas de outras nacionalidades podem ser verdadeiras sementes de transformação.

E há ainda um “efeito secundário” que raramente se discute: viajar permite-nos parar. Longe da agenda, das notificações, do e-mail e do ruído habitual, surgem silêncios que nos devolvem perguntas essenciais: “Ainda me revejo neste caminho?”, “O que é que realmente faz sentido para mim?”. Muitas vezes, é ao tropeçarmos em ritmos de vida diferentes que a nossa bússola interna começa, finalmente, a alinhar-se com o que já andava esquecido.

Viajar não substitui a formação técnica, mas pode potenciá-la. Alarga o olhar, afina a escuta e devolve-nos a dúvida, uma aliada silenciosa do pensamento crítico e do crescimento. Para psicólogos e futuros psicólogos, o passaporte pode ser mais do que um documento: pode ser uma ferramenta poderosa de desenvolvimento pessoal, ético e profissional.

Há aprendizagens que não surgem apenas da leitura, mas das vivências. Porque, quando saímos da rota, ativamos processos de desenvolvimento que nenhuma aula pode simular. E é nesse cenário, fora da sala, que o mundo se revela como o nosso mais exigente, e transformador, professor.

Kolb, D. (1984). Experiential learning: Experience as the source of learning and development. Englewood Cliffs, NJ: Prentice Hall.

Leung, A. K.-y., Maddux, W. W., Galinsky, A. D., & Chiu, C.-y. (2008). Multicultural experience enhances creativity: The when and how. American Psychologist, 63(3), 169–181. https://doi.org/10.1037/0003-066X.63.3.169