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Voluntariado em Psicologia: Sim ou Não?

Artigo por Edite Queiroz

Sendo a Psicologia uma ciência dedicada ao estudo do comportamento humano, com uma abordagem inicialmente remediativa, a sua história é marcada por uma lógica assistencialista que sobreviveu aos muitos avanços da Ciência Psicológica, ao alargamento da acção dos/as Psicólogos/as aos domínios da Prevenção e da Promoção e à actual concepção da Saúde Psicológica enquanto parte integrante e fundamental do conceito de Saúde. Também o voluntariado, surgido no âmbito da acção de organizações religiosas, é um fenómeno de carácter originalmente caritativo, cuja actividade permitiu, ao longo do tempo, suprir carências de apoios e serviços públicos.

“[…] a missão do voluntariado confunde-se, genericamente, com a missão da Psicologia, implicando ambos um compromisso pessoal com a Saúde, o bem-estar e a qualidade de vida das pessoas.”

Assiste-se, nos últimos anos, a uma lenta mudança de paradigma, no que respeita ao reconhecimento dos contributos dos Psicólogos e Psicólogos para a sociedade e aos benefícios práticos da sua acção na vida das pessoas e comunidades. Paralelamente, é também visível uma evolução no conceito de voluntariado, cada vez mais encarado como actividade essencial da sociedade civil, inerentemente relacionada com a promoção dos valores pessoais e pró-sociais por via da participação cívica e com o desenvolvimento pessoal e da cidadania activa: os/as voluntários/as contribuem, com  tempo e esforço, para a prevenção e a resolução de problemas, para aliviar o sofrimento dos outros e melhorar as suas condições de vida, ao mesmo tempo que desenvolvem os seus valores e competências e ampliam o seu (auto-)conhecimento. Actualmente, o voluntariado em Portugal possui um enquadramento jurídico próprio, norteado não apenas pela gratuitidade, mas pelos princípios da solidariedade, participação, cooperação, complementaridade, responsabilidade e convergência. Também desta perspectiva, a missão do voluntariado confunde-se, genericamente, com a missão da Psicologia, implicando ambos um compromisso pessoal com a Saúde, o bem-estar e a qualidade de vida das pessoas.

Ora, esta suposta sobreposição entre a missão e natureza da Psicologia e do voluntariado cristalizou-se num traço identitário de muitos profissionais da Psicologia, reforçado por dificuldades de inserção no mercado de trabalho, que, por um lado, explica o seu envolvimento frequente em actividades não remuneradas e, por outro, tem obstaculizado a afirmação da profissão. Há uma inegável associação entre a actividade dos/as Psicólogos/as e o trabalho voluntário que, em muitas situações, surge em substituição de postos de trabalho essenciais ou mascara situações de trabalho precário. São disso exemplos claros a prática generalizada de baixos salários, o historial de estágios não remunerados (por vezes estendidos por vários anos, na expectativa de uma futura contratação) ou o escasso número de profissionais nos serviços públicos de Educação e Saúde. Mesmo num momento em que a Saúde Psicológica adquire inaudita relevância na esfera pública, fruto dos efeitos da pandemia COVID-19 e do aumento de problemas de Saúde Psicológica em todo o mundo, é ainda esperado que os Psicólogos e Psicólogas possam prestar cuidados psicológicos à população de forma gratuita.

Da mesma forma que o voluntariado não pode ser instrumentalizado no âmbito da empregabilidade, substituindo a responsabilidade do Estado de proporcionar e garantir direitos aos cidadãos (económicos, sociais, culturais e de Saúde), os Psicólogos e Psicólogas não devem realizar trabalho voluntário em qualquer situação ou contexto em que este possa ser substituído por uma relação formal de trabalho. Somos especialmente cientes das muitas vantagens do voluntariado para quem o recebe e quem o faz, contudo, elas não podem contribuir para uma visão reducionista e secundária do nosso papel. Assim, no sentido de reforçar a afirmação da Psicologia na sociedade, devemos pautar a nossa acção por um combate activo à persistência de uma percepção assistencialista e acessória da profissão, que perdura em muitos contextos onde o nosso trabalho e competências são necessários e reconhecidos, mas não adequadamente compensados do ponto de vista remuneratório. O voluntariado em Psicologia deve acompanhar a evolução social do próprio conceito de voluntariado, deslocando a sua prática para uma lógica de desenvolvimento pessoal e social. Sempre que assim não é, tratar-se de trabalho especializado gratuito, desmerecido e desvalorizado.