Artigo por Edite Queiroz
Era uma vez a Academia OPP. Quando foi criada, em 2015, realizávamos sessões presenciais, em todo o país, dirigidas ao 1º, 3º e 5º ano de formação em Psicologia. Nessa altura, as últimas sessões eram essencialmente focadas na transição para o mercado de trabalho, nas dúvidas relacionadas com o estágio profissional (ano profissional júnior) e nos percursos de carreira, não raras vezes, em colisão com aspirações pessoais dos estudantes. Um dos exercícios que propúnhamos desafiava-os a identificar as grandes áreas de intervenção onde gostariam de trabalhar (Clínica? Educação? Trabalho), mas também aspectos mais particulares, relacionados com o público-alvo (crianças? adultos? pessoas mais velhas?), níveis de intervenção (individual? grupal? organizacional?), missão institucional, temas concretos. Depressa emergiam receios, inteiramente justificados, de reduzidas oportunidades que se adequassem a esse somatório de características ideais.
“… não há espaços convencionais para a nossa acção. Os Psicólogos/as podem actuar sempre e onde houver pessoas.”
Joana (este não é o seu verdadeiro nome) frequentava o último ano de Psicologia numa instituição portuense quando recebeu a nossa visita. Ao realizar este exercício simples, identificou, com facilidade, a sua paixão pela Clínica. Reconheceu também que preferiria permanecer no Porto, a trabalhar com adultos, com problemáticas e dificuldades quotidianas (não necessariamente psicopatologia). Dentro destas, identificou concretamente as questões da perda e do luto. Meio caminho estava feito. Mas como identificar um local para desenvolver um trabalho com estas particulares?
No momento seguinte, sugerimos à Joana que identificasse entidades cuja missão envolvesse, de alguma forma, as questões da perda e o luto. Ela nomeou algumas instituições e muitos desafios: a maior parte é de natureza pública e há poucos (ou nenhuns) concursos; o papel do Psicólogo/a é ainda subsidiário na sua missão; e quando lidam com estes temas de forma directa, já têm Psicólogos/os nos quadros. Seria sempre possível explorar opções que parcialmente reunissem as preferências da Joana, ou, não as reunindo, que lhe permitissem realizar o estágio (mas esta não é a verdadeira questão). Seria o momento de desistir ou adiar o projecto profissional da Joana?
Com a turma, falámos um pouco da imagem pública dos/as Psicólogos/as e dos contextos onde são tão necessários e não estão presentes. Refletimos sobre o papel de cada um, estudantes e profissionais, na afirmação da Psicologia, na identificação de necessidades e na demonstração da relevância dos nossos contributos. E regressámos à Joana, perguntando onde existia, então, a lacuna que ela pretendia preencher. Depois de alguma hesitação, a Joana respondeu, com voz sumida “– Uma funerária?…”. Referiu-se à “Boa Memória” (este não é o seu verdadeiro nome), na rua onde vivia, onde desde sempre vira entrar pessoas em sofrimento. A turma franziu um sobrolho colectivo. “Que estranho!”. Ademais, é um sector familiar, onde a contratação é difícil. Não existem Psicólogos/as a trabalhar em agências funerárias. Teriam dificuldade em perceber o que podemos lá fazer. Para elas, a Psicologia não é um serviço “essencial”.
Naturalmente, todas estas observações são desmontáveis. E existe evidência científica suficiente para afirmar que a acção dos Psicólogos apresenta muitos benefícios, quer para as pessoas enlutadas, quer para as que trabalham nestes espaços. Estes apenas não são, como tantos outros, “contextos convencionais” da intervenção psicológica.
Desafiámos a Joana a contactar a agência, a realizar uma apresentação breve e a explicar, de viva-voz, qual poderia ser o seu papel. E, realizando o seu estágio profissional, a consciencializar para uma necessidade que facilmente se poderia converter num posto de trabalho permanente, um serviço não apenas diferenciador para a entidade, mas com impacto positivo na Saúde Mental das pessoas e da comunidade, numa área tão transversal, mas tão difícil, como a gestão do momento da morte e suas consequências.
Assim foi. A Joana acabou o curso e apresentou o seu projecto. Realizou o ano profissional júnior, que concluiu com a classificação de Muito Bom. Ficou, até hoje, a trabalhar no seu local de estágio, onde já recebeu outros/as Psicólogos/as, que beneficiaram do seu rasgo e da sua experiência. E desde então, também a OPP recebeu muitos outros projectos de estágio para agências funerárias – e muitos Psicólogos/as trabalham agora nesses locais. Onde, antes, não havia Psicólogos/as.
Como nota final, lembramos que não há espaços convencionais para a nossa acção. Os Psicólogos/as podem actuar sempre e onde houver pessoas.
Esta é uma história verdadeira.