PsiCarreiras

logo-psicarreiras
Blog

O Mito do Psicólogo Invencível

Artigo por Edite Queiroz

Persiste, em torno da Psicologia, uma aura de invulnerabilidade ao sofrimento psicológico apoiada na ideia de que os(as) psicólogos(as) são mais resilientes ou imunes a problemas de saúde psicológica – ou podem, com facilidade, actuar em causa própria. A esta crença associa-se um estigma ligado à admissão de fragilidades por parte dos próprios profissionais, que quando afectados por estes problemas, acabam muitas vezes por sofrer silenciosamente, por receio de perder estatuto profissional ou atrair uma reputação negativa para si mesmos ou para a profissão. Estes aspectos são responsáveis pela noção cristalizada de que o(a) psicólogo(a) é, em qualquer área de intervenção, um profissional sempre pronto e disponível para a missa primordial de cuidar do Outro e detentor de soluções para um conjunto alargado de questões e problemas complexos, aos quais aplica não só os seus conhecimentos científicos e técnicas, mas também as suas características pessoais, o seu temperamento e carácter, a sua capacidade empática, a sua criatividade. Por tudo isto, e de forma paradoxal, os(as) psicólogos(as) são frequentemente negligentes em relação a necessidades próprias, têm dificuldade em aceitar que também têm problemas e são, efectivamente, mais resistentes à procura de ajuda especializada.

Naturalmente, apesar da sua formação, experiência e extensos conhecimentos sobre o comportamento humano, os(as) psicólogos(as) são vulneráveis a problemas de saúde psicológica ao longo da vida. Apresentam, na verdade, riscos acrescidos, relacionados com a exigências específicas da profissão, com os seus contextos de trabalho, características individuais, aspectos particulares das suas vidas e ainda com o contexto social, económico e político em que actuam. O isolamento em que muitos trabalham (mesmo quanto integrados em equipas multidisciplinares), a exposição a material traumático, a urgência de resultados ou a falta de oportunidades para receber supervisão ou feedback positivo podem ser psicologicamente extenuantes. Para além disso, são ainda muitos os deságios à empregabilidade, à autonomia e à valorização profissional, que coexistem com a instabilidade financeira e a insegurança laboral, a necessidade de trabalhar em contextos não preferenciais, a persistência dos obstáculos ao reconhecimento público dos nossos contributos e respostas políticas insuficientes ao acolhimento do nosso trabalho. A evidência científica demonstra que estas particularidades nos expõem a um risco acrescido de burnout, traumatização secundária e fadiga por compaixão, bem como de níveis elevados de stresse, ansiedade, depressão, distúrbios alimentares, problemas de sono, fobia social ou mesmo ideação suicida. Por sua vez, estes problemas podem implicar uma diminuição do envolvimento, erros mais frequentes, inobservância de regras deontológicas e insatisfação com a profissão, com efeitos directos na qualidade do trabalho e impacto negativo na imagem pública da Psicologia, na credibilidade dos serviços prestados ou na atenção por parte dos media, bem como consequências nas recompensas sociais e salariais recebidas.

(…) o(a) Psicólogo(a) é a sua principal ferramenta de trabalho – ou, dito de outra forma, não é possível ser Psicólogo/a sem assumir as vulnerabilidades e desafios que decorrem de ser Pessoa.

Aproveitemos para reforçar a ideia, várias vezes discutida nos nossos artigos, de que o(a) Psicólogo(a) é a sua principal ferramenta de trabalho – ou, dito de outra forma, não é possível ser Psicólogo/a sem assumir as vulnerabilidades e desafios que decorrem de ser Pessoa. Se esta consciencialização é o primeiro passo, devemos ainda, em segundo lugar, proteger-nos (e aos Outros) perante a possibilidade de interferência de problemas pessoais no nosso trabalho, e em terceiro, combater o mito do psicólogo invencível, aplicando em nós o que aos Outros recomendamos: reconhecer que todos temos fragilidades, identificar riscos específicos, reservar tempo e energia para o nosso auto-cuidado e, se necessário, procurar ajuda.  Este esforço, tanto quanto um investimento na nossa saúde psicológica, bem-estar e qualidade de vida, é também um imperativo ético: dele depende a qualidade do nosso desempenho, bem como a capacidade de levar mais longe e a mais pessoas os contributos inestimáveis da nossa ciência.